Opinião

Cipriano, um jovem como eu

Kumuenho da Rosa

Jornalista

Cipriano era um jovem empregado de limpeza, simpático e bem-falante, aparentemente trabalhador dedicado. O seu maior defeito era, talvez, a sua aparente incapacidade de perceber quando estava a ser inconveniente ou inoportuno.

07/05/2024  Última atualização 07H46

Esse seu despreparo já lhe valeu alguns raspanetes da minha parte ou um olhar indiferente a roçar mesmo a descaso, mas que ele próprio percebia ser algo artificial, nada a ver com a minha pessoa.

Mas o rapaz era teimoso, persistente. Dava um tempo e depois vinha com uma conversa toda sem sentido e lá estávamos nós a falar. Umas vezes era a política outras o futebol. Arranjava sempre uma forma de me provocar, no bom sentido, é claro, a ver se conseguia algo.

Nossos encontros foram sempre ocasionais. Talvez fortuito fosse o termo mais adequado, mas de repente criamos uma relação de afinidade. Eu na qualidade de frequentador ocasional de um café num shopping de Luanda e ele encarregado de limpeza. Houve um dia que ele decidiu pôr conversa comigo, convidando-me, como quem não quer nada, para um debate não declarado sobre as prioridades do Executivo.

Assim mesmo, de repente, um rapaz de estatura baixa, franzino, com um sorriso fácil e quase permanente, estampado no rosto, chamou-me director, pediu-me desculpas e disparou: "Não acha que o Executivo devia resolver primeiro o problema da subida dos preços dos produtos da cesta básica em vez de dar carros aos Deputados?”

Sorri para ele e perguntei se tinha a certeza que o Executivo é quem estava a dar carros aos Deputados.

Primeiro fiquei com dúvidas se seria capaz de perceber a resposta. É que respondê-lo com uma pergunta poderia não ajudar muito. Mas o sorriso dele acabou por ajudar.

Pareceu admitir que a sua pergunta é que tinha sido mal colocada. Ele apresentou-se como estudante finalista do curso de Estatística, e concluiu dizendo que "acompanhava atentamente” as minhas intervenções na televisão.

Este episódio tem mais ou menos um ano e ocorreu-me agora porque há algum tempo que dei pela falta do Cipriano. Passaram-se semanas sem lhe pôr os olhos e então bateu uma estranha saudade do meu amigo da limpeza.

Não sei se é uma espécie de retribuição, do tipo mal com o mal se paga, mas a verdade é que as conversas como as que tinha com o Cipriano, por mais curtas e fortuitas que fossem, ajudam sempre a perceber minimamente o que se passa na cabeça de muitos jovens angolanos.

Cipriano não é imediatista, como de resto são a maioria dos jovens da geração da internet e das redes sociais, para quem tudo é para já e o futuro a Deus pertence. Mas também não é conformista como de resto são aqueles que escondem as suas próprias limitações num seguidismo canino e no apego a dogmas cada vez mais estranhos ao mundo actual.

O facto de ter e manter um emprego por mais de um ano já era demonstrativo que ele não encaixava bem no perfil do jovem da geração do Tik-Tok. A sua carreira estudantil revelava compromisso e preocupação com o futuro, que é outra característica não associada aos imediatistas, normalmente impacientes e desapegados, diria mesmo alérgicos, a tudo o que lhes lembre o passado.  

Os imediatistas também têm dificuldades em manter amigos ou relações de afinidade. Fogem como o diabo da cruz a tudo o que significa compromisso ou responsabilidade futura. Relativizam de tal sorte a ética, a confiança e a lealdade, o que os torna geralmente egoístas e dissimulados, mas… boas pessoas. Muitos até vão à igreja ao domingo de manhã, mas à noite, na maior das calmas,tratam de repor o saldo dos pecados cometidos.

Faz-me lembrar uma vizinha na Samba, que ia sempre à vigília na igreja. Membro activo do coral, mas certa vez havia confusão na porta da casa dela. Apercebendo-me da minha preocupação com a vizinha, afinal era tão simpática e dócil, com aquele ar de avozinha, lembrando a "Velha Xica” da canção de Waldemar Bastos, um vizinho da porta ao lado disse-me que a senhora, afinal, vende tala.

Meu Deus… Como é possível? Fui a correr dizer à esposa que íamos mudar de casa. Ela que já não estava assim tão convencida de que morar próximo do trabalho justificava o sacrifício, pulou de alegria quando ouviu que a decisão estava tomada: íamos mesmo mudar de casa.

Levou algum tempo até me sentir em condições de lhe contar o que aconteceu. Também não sei se ela terá acreditado, mas não importa. Fiz aquilo que era o melhor para mim e para a minha família. Uma avó que vai à Igreja, pica o ponto em todas as vigílias, mas que se dedica à venda de tala, só pode ser coisa de demónio.

Mas voltando ao meu amigo Cipriano, ontem mesmo voltamos a encontrar-nos. Precisou de se identificar porque estava de cabeça rapada e um pouco mais magro que o normal. Tranquilizou-me, dizendo que tinha concluído a recruta e seria bombeiro. Bem, fiquei feliz, mas ao mesmo tempo confuso, pois não sei se o país não terá perdido para sempre um quadro formado em Estatística. Desejei-lhe sorte, ainda assim. Continuo a não o ver como imediatista, tampouco conformista.Somente um jovem, como eu. Espero que seja um bom bombeiro.                                                                                      

 *Jornalista

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